Não sou grande
apreciador da nouvelle cuisine. Apesar de cultivar uma alimentação frugal e
adequada à idade, sou mais de
sarrabulhos, feijoada à transmontana ou favas com entrecosto, quando amesendo
com amigos em prolongado convívio.
No entanto, como (quase) todos os homens, sou fraco perante
os exóticos gostos das mulheres e por
vezes concedo visitar esses altares da gastronomia, cedendo ao apelo de vozes
femininas a quem estes locais onde o preço de uma refeição é inversamente proporcional
ao da quantidade de comida que nos
colocam no prato, agrada sobremaneira.
Tal como acontece com os títulos nobiliárquicos e a
avaliação dos produtos tóxicos pelas agências de rating, nestes restaurantes onde se fala em surdina
e os empregados nos rodeiam a mesa como se estivessem a executar um
bailado em pontas, enquanto decantam o vinho,
o nome dos pratos também é determinante para a elaboração do preço. Já
aprendi, por isso, que quanto mais sofisticado for o título do prato colocado
na coluna da esquerda das ementas, mais
desproporcionada será a relação qualidade preço fixada na coluna da
direita.
Apesar de ser uma pessoa mais ou menos familiarizada com os
segredos da culinária, não foram raras
as vezes em que já me senti tentado a propor a existência de um glossário
acompanhando as ementas, para evitar o incómodo de perguntar ao empregado:
“ Desculpe, mas o que é isto de línguas de fettucini com
repas de suíno em couli de frutos silvestres?”
Não é que não me tivesse passado pela cabeça que a tradução
correcta fosse “ pasta com presunto,
ensopada num molho agridoce”, mas nestas situações gosto sempre de
confirmar, se um prato daqueles vale
mesmo 25€!
Bem, mas neste restaurante a que fui atraído pelos pedidos
dengosos de Marlene Vanessa, a tradução até nem era difícil. Havia, por
exemplo, “ O prato que a Branca de Neve
serviu aos 7 anões”*, que a Ana Zannatti me ensinou a confeccionar nos longínquos anos 80 e que por vezes
reproduzo fielmente, para impressionar
alguns convivas que aportam ao meu rochedo.
Também não tive dificuldade em interpretar o significado de “ Cama de borreguinho em almofada de cítricos e lençol de frutos do
Atlântico”. Não me pareceu nada módico que me cobrassem 20€ por um bocado de
borrego recostado sobre uma rodela de
laranja com sumo de limão e coberto por umas rodelas transparentes de ananás
dos Açores” mas, à falta de alternativas que me fizessem explodir no palato as
excrescências salivares, foi este o prato que escolhi.
Já a Marlene Vanessa escolheu, sem hesitações, “Espuma de ruibarbo e rabano com espargos
salteados, alcachofra, portobellos e tomate cereja”. Não sei se a escolha teve
a intenção de me provar os seus conhecimentos da nouvelle cuisine, ou foi
motivada pela sua aposta numa dieta que lhe permita manter firmes as curvilíneas formas que, a cada passada, parecem
indecisas entre saltar da blusa prudentemente desabotoada no topo, ou
pela generosa racha da saia que permite antever o prazer do pecado da carne.
Sei, é que Marlene Vanessa recusou o “amuse bouche” de anchovas
de escabeche com raspas de tomate, cebola e coentros, que nos serviram para amenizar a espera e invocar o néctar de Baco,
criteriosamente por mim escolhido. Exibindo os conhecimentos adquiridos na
Faculdade de Medicina – que garante aplicar nas dietas nutricionais prescritas
aos seus pacientes- Marlene teceu uma
longa dissertação sobre os malefícios das anchovas para a pele, que apenas me despertaram o apetite para
abocanhar a dose dela. Porém, o recato que um homem deve ter nestes locais
inibiu-me de o fazer e, se lamentei não estar a jantar no tasco do senhor
Alexandre, para deixar a gula em roda livre, logo me reconfortei ao pensar que
outros pitéus me poderiam estar reservados para mais tarde.
O jantar decorreu naquela conversa pisca-pisca que deixa sempre no homem a dúvida de estar a
ser cana de pesca ou isco para o anzol. Quando, no momento de pedir o café, sugeri um
digestivo, Marlene Vanessa colocou o
duque de trunfo na mesa, cortando-me a manilha de copas:
"Já é um bocado tarde e gostava que fosses lá a casa para
me dares a tua opinião sobre dois quadros que comprei no fim de semana.
Podíamos tomar lá o copo. Que te parece?”
Neste momento, se o protagonista masculino fosse Santana
Lopes, talvez tivesse pensado que estava a ouvir o tão famoso concerto para violinos de Chopin mas, como sou
pessoa buçal e de gostos simples, apenas pensei: “Que se lixe! Quero lá saber se
sou cana ou isco…o importante é que haja pescaria!”.
E foi assim que, a pretexto de apreciar duas obras de arte,
algumas horas mais tarde estava a apreciar pormenorizadamente os relevos de uma
outra em três dimensões que não vinha no catálogo, mas tinha a preciosa vantagem de falar e ser
sensível ao toque.
Deitado na cama perfumada
de Marlene Vanessa, não senti
falta dos lençóis de frutos dos Açores, nem da almofada de citrinos. Lembrei-me
apenas da Branca de Neve e das vantagens da “nouvelle cuisine”.
Aviso aos leitores: este post pretende ser uma homenagem à Restaurante Week que está a decorrer em vários locais do país até dia 6 de Março
Em virtude da falta de inspiração que por aqui tem reinado, reproduzo esta croniqueta que publiquei em primeira mão em Abril de 2012, aqui
*“ O prato que a Branca de Neve serviu aos 7 anões” é um gratinado onde o ingrediente base é o queijo da serra, recheado com carne picada.