Em 1990, estava eu numa conferência sobre Direitos Humanos
em Montreal quando, após ter feito uma intervenção sobre os direitos das
minorias autóctenes, fui interpelado por um representante do Suriname que queria saber a minha opinião
sobre a pretensão de alguns países das Caraíbas em receber indemnizações dos
países europeus colonizadores , por causa do tráfico de escravos e o genocídio
de indígenas naqueles países.
Respondi que se a pretensão dos países caribenhos tivesse qualquer viabilidade, à luz do
direito internacional, então também deveria ser equacionada idêntica reparação para
os países africanos, onde os países europeus perpetraram atrocidades similares.
Lembrei, também, que haveria que colocar nos pratos da balança o Deve e o Haver
resultante dos Descobrimentos. É que, embora reconhecendo os erros e os actos
de selvajaria ( seria mais apropriado
falar em barbárie) dos Descobrimentos, os países colonizados também extraíram
benefícios que teriam de ser
contabilizados.( Felizmente ninguém me perguntou quais…)
Terminei dizendo que, em qualquer caso, não me parecia que
uma reivindicação desse teor tivesse qualquer viabilidade se desencadeada por
um ou dois países, devendo antes ser
discutida no seio da Comunidade das Caraíbas (CARICOM).
( A CARICOM é uma organização criada em 1973, por
ex-colónias de países europeus que se juntaram após a independência, para
resolver problemas comuns)
No ano seguinte, em Manila, tive oportunidade de ouvir uma intervenção
inflamada de um representante da Jamaica
que reclamava uma acção concertada dos países do CARICOM no sentido de ser
estabelecido, com urgência, um caderno reivindicativo, para que as indemnizações
fossem pagas até final de 1999.
Ainda ouvi algumas
intervenções sobre o tema em Port Moresby, Soufriere e Paramaribo(
talvez em mais um ou outro lugar que não recordo) mas, meses depois da Cimeira do Rio, em 1992, novos desafios
exigiram a minha dedicação exclusiva a um programa sobre desenvolvimento sustentável.
Reduzi a pegada ecológica
e mudei de interlocutores( embora sem perder contacto com o programa dos
Direitos Humanos).
Em 2001, em Durban, durante o jantar de encerramento de uma
conferência sobre sustentabilidade, tive oportunidade de conversar durante
alguns minutos com o representante da CARICOM e não resisti a
perguntar-lhe qual era o ponto da
situação sobre o pedido de indemnizações pretendido por alguns países
caribenhos. Evasivo, respondeu-me apenas que teria de ser uma decisão tomada a nível de governos
e não havia sequer consenso para avançar. Ainda tentei sacar mais algumas
informações mas, perante as evasivas, senti que se erguera um muro que não quis
ultrapassar. Até porque já era conhecido, nessa altura, o pedido de
indemnização de quase 700 mil milhões de euros, feito em 1999 por vários países
africanos, alegando razões idênticas às invocadas pelos países caribenhos.
Ao longo dos últimos anos fui tendo notícias da realização
de conferências intergovernamentais (
com a presença de instituições da sociedade civil) no intuito de ser
alcançado um consenso para a elaboração de um documento onde sejam definidos os montantes das indemnizações
a reclamar aos países colonizadores. Sei, também, que a grande dificuldade de consenso, reside nos termos em que essa reparação deverá ser feita , de molde a
não afrontar os países europeus.
Em Junho houve uma
reunião com a UE, onde o assunto foi debatido e há duas semanas,
em Antigua, teve lugar mais uma dessas conferências. Em cima da mesa esteve a discussão de uma
proposta da CARICOM que poderá conduzir à abertura de negociações com os países
colonizadores ( Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra ).
Os 15 países presentes acusaram os países colonizadores de
serem responsáveis pela situação sócio-económica da região, por causa da escravatura. Exigem,
por isso, ser recompensados, através de investimentos dos ex- colonizadores na
região, nomeadamente construindo infra-estruturas (escolas, centros de saúde,
hospitais e estradas) e defendem o não pagamento de dívidas aos antigos colonizadores.
Não vou pronunciar –me sobre a justeza da reivindicação. Pretendo
ir bastante mais longe: a possibilidade de reescrever a História.
Se um dia as negociações forem encetadas, é inevitável que
se reabra a discussão sobre o papel dos países colonizadores durante os
Descobrimentos. Nessa altura, os contos de fadas que nos ensinavam na escola
primária deixarão de fazer sentido e Oliveira Martins talvez seja mais lido, do
que alguma vez foi, pelos portugueses.
Durante séculos, esse período da nossa História foi-nos
apresentado como uma epopeia e Os
Lusíadas como Bíblia. Os historiadores
davam uma ajuda e a maioria dos professores de História omitiam o lado
sangrento desse período, onde foram cometidos crimes ignóbeis por aqueles que
endeusamos como heróis. ( Vasco da Gama, por exemplo, era um sanguinário
impiedoso que cometeu crimes bárbaros que nos dias de hoje o levariam ao Tribunal de Haia, onde seria condenado sem
remissão, por crimes contra a Humanidade).
Será a oportunidade de nos conhecermos melhor e de tirar
algumas teias de aranha das nossas imaculadas cabecinhas. Como, por exemplo, a glória
de termos sido pioneiros da globalização. Porque os Descobrimentos, meus caros,
é uma página da nossa História que nos enobrece pela ousadia, mas também nos
envergonha pela barbárie que lhe esteve associada.