Desde miúdo me habituei a conviver com cães. Havia muitos em minha casa, de vários tamanhos e raças, mas com um denominador comum: eram todos meigos.
Poderia aqui desfilar uma série de histórias sobre cães. Desde o pastor alemão que anunciava aos meus pais que eu ia passar o fim de semana ao Porto, porque assim que eu chegava à Praça de Velasquez começava a ladrar e a correr como louco à volta do jardim, ao São Bernardo que se afeiçoou a um tio meu de tal maneira, que depois da sua morte passava os dias na sua campa, junto da qual foi encontrado morto, no dia em que estranhámos não ter regressado a casa à hora habitual.
Poderia falar-vos de um irritante chihuahua, favorito da minha mãe, que passava os dias a acirrar os cães mais corpulentos, beneficiando da sua complacência, mas que um dia encontrou o pastor alemão mal disposto e levou uma patada que o deixou a ganir meia hora.
Poderia ainda evocar o Labrador que um dia "prendeu" no jardim, junto à garagem, a empregada que ainda não conhecia, impedindo-a de sair até à chegada de alguém da casa. Quando o meu irmão chegou, deparou-se com um espectáculo digno de cena de filme. O cão tinha-a encostado com as patas à porta da garagem. Depois- versão da própria- libertou-a, mas sempre que ela fazia menção de se afastar do local onde ele a fizera refém, rosnava, voltava a assentar-lhe as patas sobre o peito durante uns segundos, voltava a libertá-la, mas mantinha-a sob vigilância apertada, sentado sobre as patas traseiras.
Poderia contar-vos muitas outras histórias, mas o propósito deste post não é esse. O que quero declarar é que, apesar de terem passado por minha casa e dos meus avós, dezenas de cães,nunca nenhum cão lá de casa mordeu ninguém. Impunham respeito com umas rosnadelas. Eram treinados para agir canilizadamente, que é a forma civilizada do comportamento canino.
Ultimamente tornaram-se frequentes os casos de cães que matam. Umas vezes porque são treinados para isso, outras porque não sou treinados para nada e reagem de forma instintiva quando se sentem ameaçados.
Muito casos saltam para as primeiras páginas dos jornais; a maioria é silenciada, ou notícia de rodapé.
Nos últimos dias, foi notícia a morte de uma criança de ano e meio às patas de um dogue argentino.Mais uma vez, deu direito a reportagem televisiva e à discussão sobre a razoabilidade de ter em casa cães potencialmente perigosos. Dentro de uma semana o assunto estará esquecido, até que outra criança seja vitimada por um outro ataque.
Como sempre acontece em Portugal, vai-se adiando a resolução do problema. Há quem diga que não há cães maus- o que é mentira- e a culpa é dos donos- muitas vezes é verdade. É uma discussão estéril que não leva a lado nenhum. A legislação em vigor sobre a posse de cães incluídos no conceito de "raças perigosas" não só não é muitas vezes cumprida, como não é fiscalizada.
Há cães treinados para matar. Há cães treinados para lutar entre si, em lutas clandestinas,para gáudio de alguma populaça e proveito financeiro dos seus proprietários e dos apostadores.As autoridades fingem ignorar. A legislação- ainda que tacanha- não é cumprida. Há cães destes a viver dentro de apartamentos e de nada adianta fazer queixa à polícia. As autoridades reagem com a mesma indiferença com que ouvem as queixas de uma mulher vítima de violência doméstica.
Sobre a morte da criança ocorrida há dias, alguns jornais deram notícia. Outros, optaram por destacar as lágrimas da filha do senhor primeiro-ministro, assustada com uns manifestantes que protestavam contra as portagens na A22. Nas caixas de comentários não faltou quem considerasse os manifestantes mais perigosos do que os cães- ideia aliás pressurosamente transmitida por uns tipos com carteira de jornalista- porque, imbecis, tinham assustado a pobre da menina.
Dentro de algum tempo, haverá mais uma notícia de uma morte. De adulto, ou de criança, pouco importa. O atavismo das autoridades continuará. Indiferente a uma vida humana ceifada pela incúria dos homens. Será, obviamente, apenas mais um acidente. E se a vítima for um reformado, tanto melhor...sempre se poupa na segurança social.
Talvez por tudo isto, hoje em dia gosto mais de gatos do que de cães. E mais de ambos, do que de alguns seres humanos que se passeiam de carro preto com motorista fardado, ébrios com os vapores etílicos do poder, mas ignorando em absoluto a realidade que os cerca.