(Continuado daqui)
A sua reacção imediata foi inventar uma desculpa e dizer a Júlio Saraiva que afinal não podia tomar café. No entanto, quando já se preparava para parar o carro lembrou-se do horóscopo que tinha lido na bomba de gasolina, enquanto esperava a sua vez:
“No plano afectivo, esta semana vai proporcionar-lhe situações que vão mexer com a sensibilidade e despertar em si o amor. Não reprima os seus sentimentos, porque o amor vai-lhe aparecer de uma forma inesperada. Aceite o desafio”.
Escolheu uma cassette de Joe Dassin e não mais pensou no assunto até Tomar.
No Estrelas pediu um café e um “Beija-me depressa” . Júlio acompanhou-a no café, mas optou por uma “Brisa”.
Catia Janine reparou que Júlio tinha as unhas pretas como as de um carvoeiro e, embora admitisse que isso se devia ao facto de ter estado a mexer na bateria do carro e nos cabos, não deixou de o recriminar interiormente, por não ter lavado as mãos antes de se sentar.
A conversa desenrolava-se entre banalidades como o tempo e o futebol. A determinada altura Cátia Janine puxou de um cigarro, que Júlio prontamente lhe acendeu com o seu Zippo.
-Ainda se lembra do tempo em que precisávamos de ter licença de isqueiro, senhora doutora? Felizmente o sr. Presidente do Conselho acabou com isso, sempre é menos uma despesa…
-Essa licença era uma estupidez, não percebo como só acabou em 1970!
Foi para defender a indústria nacional, senhora doutora. A Fosforeira é uma grade empresa e o dr Salazar achou por bem protegê-la…
E entretanto sempre sacava um dinheiro para os cofres do Estado.
Juntava-se o útil ao agradável. De qualquer maneira, dentro de casa não era preciso ter licença…
Pois… debaixo de telha, como dizia a Lei! O meu pai é que brincava bastante com isso e andava sempre com uma telha no bolso. Quando queria acender um cigarro na rua com isqueiro puxava da telha e acendia. Mas um dia teve de ir responder a Tribunal e o que lhe valeu foi ter encontrado um juiz compreensivo que lhe aplicou uma pena suspensa, por desrespeito á autoridade...
Muito espirituoso o seu paizinho, senhora doutora. Se não é indiscrição, o que é que ele faz? Também é advogado?
Não, é tipógrafo. Chefe de tipografia
Um trabalho muito bonito, sim senhora…!
Ele gosta muito, mas às vezes tem de ficar na tipografia até muito tarde, porque aparecem uns trabalhos complicados que têm de ser entregues de noite… Olhe, se quer que lhe diga não percebo muito bem a razão de ter de entregar trabalhos durante a noite, mas há clientes que são esquisitos...
Pois… estou a ver… e onde é a tipografia, senhora doutora?
É ali no Bairro das Colónias, perto da Almirante Reis. Porquê?
Nada… achei curiosa essa história que contou da telha que o seu paizinho usava para usar o isqueiro…
Desculpe lá senhor Júlio, eu não queria perguntar-lhe isto, mas qual é a sua profissão?
Trabalho no ramo imobiliário, senhora doutora. Sou chefe de vendas e agora ando a promover um empreendimento muito grande da empresa J. Pimenta. Conhece?
Quem não conhece a J. Pimenta, senhor Júlio?
Como diz a publicidade… Pois pois, Jota Pimenta! O senhor João Pimenta é aqui do Souto, ao pé de Abrantes, e é a amigo do meu paizinho, foi por isso que fui lá parar. Aquele empreendimento na Reboleira é um luxo! Casas dignas de um ministro!
Confesso que não conheço bem a zona…
Vai ser a cidade do futuro, senhora doutora. Acredite em mim! Devia comprar lá uma casa…
Ainda vivo com os meus pais, mas por acaso estou a pensar alugar um apartamento, porque não tenho dinheiro para comprar. Tem é de ser em Lisboa, porque não quero ficar longe dos meus pais. Por acaso não sabe de ninguém que tenha uma casa, mesmo pequena e queira alugar?
Onde é que moram os seus paizinhos, senhora doutora?
Na Alameda das Linhas de Torres, ali ao Lumiar.
Eu tenho uns conhecimentos no ramo… a senhora doutora sabe como é, isto é um mercado pequeno e toda a gente se conhece… vou falar com umas pessoas e depois digo-lhe. Quer fazer a fineza de me deixar o seu contacto?
Cátia Janine vasculhou a carteira, puxou de um cartão e entregou-o a Júlio Saraiva.
Peço-lhe que não me ligue para casa. Ligue-me para o escritório, de preferência da parte da tarde, porque de manhã há dias em que estou a dar aulas na Faculdade.
Muito bem, senhora doutora, pode estar descansada…
Bem, são horas de ir andando. Daqui a nada os meus pais começam a ficar preocupados.
Despediram-se com um até breve.
O regresso a Lisboa foi conturbado. Um acidente perto do Entroncamento provocou um enorme engarrafamento e Cátia Janine decidiu parar num café para telefonar aos pais a dizer que não se preocupassem.
De regresso ao carro, pensou que com tantas invenções, alguém já podia ter inventado um aparelho que permitisse às pessoas falarem do sítio onde estivessem, sem a maçada de interromperem a viagem, entrar num café e pedir uma bebida que não lhes apetece, só para fazerem um telefonema. Riu-se da sua maluqueira e comentou com os seus botões "Qualquer dia ainda escrevo um livro de ficção científica em que as pessoas comunicam todas através de uns aparelhos sem fios...”
( Capítulos anteriores aqui)