Naquele domingo , primeiro dia de Abril de 1973, Cátia Janine decidira ir até à sua terra natal, nos arredores de Tomar, para espairecer um pouco.
A crise petrolífera provocava extensas filas de automóveis junto das gasolineiras, por isso levantou-se ainda os primeiros raios de sol dardejavam a janela do seu quarto. Tomou um pequeno almoço reforçado e saiu de casa disposta a ficar umas três ou quatro horas na gasolineira à espera de vez. Como grande parte dos portugueses, levava também um
jerry can de 5 litros. Caso alguma eventualidade a apanhasse desprevenida, sem gasolina, aquela reserva permitir-lhe-ia chegar, sem dificuldade, à gasolineira mais próxima. Pelo caminho parou no café para tomar uma bica e comprar algumas revistas que a ajudassem a passar o tempo.
Comprou a “Crónica Feminina” e a "Plateia” deteve-se, hesitante, entre “O Século Ilustrado” que trazia na capa uma fotografia do Raly de Portugal, com Jean Luc Therier a celebrar a vitória e a “Flama” que destacava o embarque, na Rocha de Conde de Óbidos, de mais um contingente militar rumo a Angola. Escolheu a “Flama”, por razões que adiante perceberão.
Cátia Janine não gastava dinheiro em jornais. Limitava-se a folhear o “Diário de Lisboa”, antes de se deitar, porque era o vespertino que o pai comprava diariamente a um ardina, quando regressava a casa, depois do trabalho. De vez em quando, ao domingo, também lia o “Expresso” , um semanário com edição ao sábado, que surgira nas bancas no início do ano e que o pai dizia ser uma lufada de ar fresco na imprensa portuguesa.
Nesse domingo não leu, caso contrário teria ficado a saber que a DGS ( nome com que Marcelo Caetano rebaptizou a PIDE) tinha prendido num café de Felgueiras o Padre Mário( da Lixa) cujas homilias não agradavam ao regime. Quando a edição de 31 de Março saiu à rua, já o Padre estava detido na prisão de Caxias. Bem perto de casa do seu tio António, major do Exército que, na opinião de Cátia Janine, andava com um comportamento estranho nos últimos tempos.
Do que não teria ficado a saber, porque a Censura cortou a notícia, é que nessa mesma semana, no final de um colóquio no Centro Nacional de Cultura, sobre as eleições francesas, foi preso Mário Sotto Mayor Cardia. Seguido pelos participantes , o filósofo que haveria de ser ministro da educação, após o 25 de Abril, acabaria por ser libertado, juntando-se aos que o tinham acompanhado até ao governo civil.
Quando chegou à bomba de gasolina, na rotunda do Aeroporto- uma das poucas onde os combustíveis não esgotavam ao fim de semana- o movimento era mais reduzido do que imaginara mas, pelos seus cálculos, teria espera para duas horitas. Pelo menos…
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Foto Expresso |
Cátia Janine gostava de estar a par das novidades musicais e cinéfilas por isso, enquanto esperava, folheou avidamente a Plateia que trazia um extenso artigo sobre o filme de
Truffaut “ Uma Noite Americana”, com crítica de Lauro António, e fazia referência ao
“Exorcista” que ainda não estreara em Portugal, mas era anunciado como filme de “pôr os cabelos em pé”. Leu na diagonal uma entrevista com
Fernando Tordo que nesse ano vencera o Festival da Canção com a
"Tourada" mas, onde se deteve com mais atenção, foi na observação das fotografias de
Mark Spitz, o nadador que conquistara sete medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Munique em 1972, cuja estampa atlética fazia suspirar o sexo feminino.
Passou os olhos pela Flama que fazia uma breve referência à adesão da Dinamarca, Inglaterra e Irlanda à CEE, no início do ano ( os primeiros países a aderirem depois da criação em 1958) e dava grande destaque a uma reunião qualquer da EFTA, organização a que Portugal aderira, por impossibilidade de ser aceite no seio da Comunidade Económica Europeia.
Ainda na “Flama”, um grande destaque para a intervenção do deputado Casal Ribeiro, na Assembleia Nacional, pedindo a pena de morte para os terroristas e, ao lado, uma página inteira de propaganda turística convidava para “Moçambique –Praias de Sonho”. Sobre o massacre de 400 civis em Wiryamu ( Moçambique) e a condenação da política portuguesa em África, pela ONU, é que nem a Flama, nem qualquer revista ou jornal escrevia uma linha, porque o lápis azul da Censura o impedia.
Havia ainda uma notícia– que certamente escapara aos censores- sobre o Congresso da Oposição Democrática que teria lugar em Aveiro, na semana seguinte.
Deste Congresso, realizado durante a primavera marcelista, na fase de extertor do Estado Novo, Cátia Janine tivera notícia pelo pai, militante do MDP/CDE, mas não dera grande importância ao assunto.
Deteve-se, com atenção, na reportagem sobre o embarque de tropas para África, acompanhada de fotos tiradas em Moçambique. Numa das legendas leu: soldados em Tete ultimam os preparativos para partir em coluna militar numa ofensiva para combater os terroristas inimigos da Pátria. Procurou avidamente um rosto familiar. Não sabia que o corpo a que pertencia esse rosto estava, naquele momento, numa cama de hospital em Lourenço Marques.
( Continua)