Fotos: Publico
Ontem, ao regressar a Lisboa, não fiquei surpreendido ao ver o Pingo Doce ao pé de minha casa aberto. Estranhei foi o movimento inusitado em Dia do Trabalhador.
Já no elevador, uma vizinha indignada explicou –me a razão de tanto frenesim consumista: o Pingo Doce escolhera o 1º de Maio para fazer uma campanha de descontos de 50%! Contou-me, também, que muitos trabalhadores foram forçados a ir trabalhar, sendo ameaçados de represálias em caso de recusa.
Não fiquei surpreendido com a actuação do benemérito Soares dos Santos. Estou habituado às manobras de muitos patrões que tentam disfarçar a escroqueria do seu comportamento em relação aos trabalhadores, com acções de benemerência e caridadezinha muito propagandeada pela comunicação social.
Tampouco me surpreendeu a resposta dos consumidores portugueses, aderindo em massa – e com grande entusiasmo, como constatei ao final do dia pelas televisões - à oferta de Soares dos Santos, um dos deuses do consumo em quem depositam toda a sua Fé consumista.
Um homem exibia, orgulhoso, um talão de 385€, anunciando diante das câmaras que pagara pouco mais de 200.
Uma mulher com a felicidade estampada no rosto e um dos dois carrinhos a abarrotar de papel higiénico – provavelmente estaria a precaver-se da eventualidade de uma diarreia familiar provocada pela ingestão de alguns produtos deteriorados- berrava eufórica:
“ Isto hoje é uma festa! Lá dentro não há carrinhos e já quase houve porrada! Estive duas horas na fila da caixa, mas valeu a pena. Estou à espera do meu marido que traz mais dois carrinhos cheios, mas deve estar atascado no meio da confusão.”.
“Não acha estranho que as grandes superfícies estejam abertas no Dia do Trabalhador?”- perguntou timidamente a jornalista.
“Qual é o problema, filha? Mais vale estarem aqui a trabalhar do que andarem aos gritos na rua a protestar contra o governo. Festejam o Dia do Trabalhador logo à noite, que ainda é dia!”.
Insultei a mãezinha da mulher que não tem certamente culpa de ter uma filha néscia mas, ciente que ela não me ouvia, fiz rewind. Lembrei-me de outros 1º de Maio em que era difícil encontrar um estabelecimento ou um restaurante aberto, porque os trabalhadores não abdicavam de sair à rua para defender os seus direitos e os patrões respeitavam essa opção. Como tudo mudou em tão pouco tempo! Agora os tugas andam à pancada para comprar iogurtes em final de prazo de validade a metade do preço!
Dirão muitos que é normal as pessoas aproveitarem a oportunidade de descontos tão elevados, para fazerem compras e até açambarcamento de produtos. Dirão outros que a culpa de as coisas estarem assim e o 1º de Maio se ter transformado numa festa de consumo é deste governo.
Discordo em absoluto. O que falta aos consumidores é consciência cívica e a culpa da situação a que chegámos é, também em grande parte, da falta de consciência cívica e do egoísmo doentio dos portugueses, não só do governo.
Se fossem um povo esclarecido, perceberiam que este dia especial de descontos promovido pelo Pingo Doce, no Dia do Trabalhador, é um presente envenenado. A febre consumista – a fazer lembrar os tempos de vacas gordas- que se apoderou ontem de milhares de portugueses, por todo o país, vai ter um preço. Será pago com perdas de regalias e direitos, aumento do desemprego e redução de salários.
É certo que os consumidores portugueses também não têm uma associação de consumidores que lhes explique a importância da vertente cidadã do consumo e os convide a boicotar este tipo de iniciativas. Pelo contrário, a maior associação de consumidores portugueses sempre defendeu a abertura das grandes superfícies ao domingo, usa técnicas de publicidade escabrosas para publicitar os seus produtos e comporta-se, actualmente, como uma agência funerária, reciclada como prestadora de assistência a milhares de portugueses falidos.
Diariamente, dezenas de pessoas incapazes de cumprir o pagamento das dívidas assumidas perante os bancos, durante as duas décadas em que a Festa do Consumo assentou arraiais nas catedrais consumistas que pululam em cada bairro das grandes cidades e nos arredores das de média dimensão, recorrem à DECO pedindo ajuda. Na maioria dos casos não há solução, porque as pessoas foram contraindo novos créditos para pagar aqueles que já não conseguiam cumprir e chegaram a uma posição insustentável.
Fizeram ouvidos de mercador aos avisos que entidades como o extinto Instituto do Consumidor foi fazendo ao longo dos anos e agora acusam o governo, sem assumirem as suas próprias culpas e responsabilidades.
Ontem, depois de ver o espectáculo mediático montado em redor da operação de marketing do Pingo Doce, perdi a vontade de gritar na rua em defesa dos direitos dos trabalhadores. A minha vontade, agora, é pedir um povo novo para Portugal. Este está corroído pelo vírus consumista e, quando lá para 2015, o governo anunciar que irá restituir 25 ou 30 por cento dos subsídios de férias que lhe roubou, acorrerá às urnas e, muito agradecido, votará pela continuidade deste governo por mais quatro anos.
Não é de espantar que isso suceda. A maioria dos nossos governantes saiu do seio deste povo mesquinho e egoísta, com sede de protagonismo, seja nos Morangos com Açúcar, nos concursos musicais ou Big Brothers onde se fabricam vedetas à pressa, para serem consumidas no palco mediático como “fast food” cultural. Os portugueses revêem-se neles mais do que pode parecer. São as vedetas da política e - como dizia uma alentejana na Ovibeja referindo-se a Assunção Cristas- "a mocinha até é muito gira. Ele (Passos Coelho) também é muito giro, só foi pena ter-nos tirado os subsídios, mas a gente lá se aguenta".
Então aguentem e continuem a pensar que o doce- seja servido à colher, à fatia, ou em Pingos de desconto- nunca amargou. Mas depois não se venham queixar que os filhos não têm emprego e que vivemos pior do que há 40 anos, tá?