(Continuado daqui)
Abel e Lúcia ( nomes fictícios) eram colegas na Universidade. Começaram a namorar em 1992, concluíram os cursos em 1996 e decidiram casar quando os dois tivessem emprego.
Arranjaram trabalho em organismos do Estado e o casamento aconteceu no Verão de 1999. Os juros eram então baixos e os incentivos ao endividamento colocavam os “spreads” a uma ilusória taxa de 0%.
O Banco de Portugal sabia que não era assim, que a publicidade ao crédito estava cheia de casos de publicidade enganosa, mas não agiu.
As práticas comerciais dos bancos eram pouco transparentes, o BP reagia com indiferença, as instituições financeiras minimizavam os riscos e nem sequer respeitavam as regras que os obrigavam a escrutinar a capacidade de endividamento de quem lhes pedia crédito.
Abel e Lúcia tinham bons vencimentos e recorreram ao crédito para comprar casa. Analisaram as propostas de vários bancos e acabaram por se decidir por um que os convenceu a aproveitarem o crédito à habitação para pedirem também crédito para a compra de um automóvel e para o equipamento da casa ( electrodomésticos e mobília), alegando que assim ficaria ainda mais barato e pagariam juros mais baixos.
Lúcia progrediu rapidamente na carreira, chegando a Directora de Departamento no governo de Durão Barroso.
Abel viu a progressão na carreira congelada em 2006, mas era um técnico superior com salário apreciável, pois gozava dos benefícios salariais do ministério das finanças, que concediam remunerações suplementares. Em 2007, porém, aceitou o convite para chefe de departamento do ministério da agricultura, onde lhe foi dada a possibilidade de, cumulativamente, subir na carreira técnica.
Em 2009, por força da reestruturação do ministério da agricultura, Abel foi enviado para a Mobilidade Especial onde, ao fim de um ano, viu o seu vencimento de técnico superior reduzido a 2/3.
Neste espaço, Lúcia e Abel tiveram dois filhos, que estudam na escola pública.
Em 2011 viram os seus vencimentos reduzidos , em média, 8%. No final do ano ficaram apenas com um subsídio de Natal.
O pagamento das suas obrigações à banca tornou-se mais difícil, mas com algumas restrições lá se vão equilibrando.
Em Janeiro de 2012 Lúcia foi demitida do cargo de chefe de departamento, voltando a exercer funções de técnica superior. Abel viu o seu salário reduzido a 50% e ambos perderam os subsídios de férias e de Natal. As dificuldades agravaram-se substancialmente. Já desistiram das férias nos próximos anos, o seu padrão de vida degradou-se, não sabem como vão conseguir pagar os juros da casa.
Reconhecem, no entanto, que estão em melhor situação do que os seus colegas e amigos Luís e Fernanda, ambos técnicos especialistas, com salários muito inferiores aos deles, mas igualmente penalizados com a redução de 5% dos vencimentos e a perda dos subsídios de férias e de Natal .
Incapazes de assumir os compromissos com a prestação mensal da casa, Luís e Fernanda conseguiram vendê-la a um preço abaixo do custo e alugaram uma casa mais pequena.
Casos como estes multiplicam-se na função pública. Em algumas situações admito que tenha havido incúria ao assumir compromissos de crédito, mas a culpa não pode ser assacada por inteiro a quem a ele recorreu. O desleixo das instituições como o Banco de Portugal – que não cumpriu o dever de condenar as instituições que foram pouco transparentes na concessão de crédito e não respeitaram as regras que a lei lhes impunha- também é responsável pelo sobreendividamento de muitas famílias.
Com a imprevisível subtracção de quatro salários anuais e uma redução mínima de 10% dos rendimentos mensais, muitos casais que ingressaram na função púbica, confiantes de que tinham assinado um contrato com o Estado que os salvaguardaria de quaisquer imprevistos, estão em situação extremamente difícil.
Aquilo que um cidadão nunca espera – em Portugal ou em qualquer país do mundo civilizado- é ser enganado nas cláusulas de um contrato, pelo próprio Estado.
Tal como nos casos de Anabela e de António, de que falei aqui ontem, os funcionários públicos viram as regras alteradas unilateralmente pelo contraente Estado.
Pergunto: até quando o TC aceitará, placidamente, este roubo aos funcionários públicos, sabendo-se que o governo enganou os próprios juízes ao afirmar que o corte de subsídios seria temporário e duraria apenas dois anos?
Que confiança pode ter um cidadão ( seja ele funcionário público ou não) num governo que, sempre que lhe apetece, rasga os contratos que assina com os contribuintes e estabelece as suas próprias regras?
Portugal é um país democrático, ou uma leira de terra governada por um bando de ladrões a cujas regras os próprios juízes se submetem docilmente?
Adenda: Para assegurar a aquiescência do TC no corte dos subsídios - e noutras medidas inconstitucionais que se adivinham - os partidos do governo vão nomear dois juízes que dêem garantias de apenas abanar as orelhas. O CDS acabou de indicar a juíza Fátima Mata-Mouros. Convertam-se já...