
Por razões de ordem profissional, Frederico teve que se deslocar a Bruxelas. Uma noite, foi convidado por um belga para jantar, a fim de ultimar a preparação de uma reunião que teria lugar no dia seguinte. Jantaram num daqueles restaurantes contíguos à Grande Place onde as conversas se travam em surdina - para não perturbar as moscas que mergulham na manteiga e se poder apreciar o melodioso tilintar dos talheres de prata a roçar os copos de meio cristal.
Consultada a lista de fio a pavio, Frederico decidiu-se por um rosbife, enquanto o seu anfitrião optava por um bife com cogumelos. Depois de uma sobremesa “caseira” com sabor a instantânea e de um café sofrível,o empregado apresentou a conta em pergaminho, encerrado num cofre a fazer lembrar uma “loja de Trezentos” (bem agora são lojas do 1,5€, mas como não dá jeito nenhum, prefiro a velha designação...) e perguntou , entre salamaleques, se estavam satisfeitos com o repasto.
Embora estivesse plenamente consciente deque a única coisa que se safara fora o vinho, criteriosamente escolhido, Frederico respondeu, com um sorriso amarelo, que sim senhor, estava tudo bem. Do outro lado da mesa, porém, o seu companheiro de ocasião não esteve pelos ajustes e, calmamente, com um sorriso nos lábios e voz suficientemente audível, foi dizendo que o jantar não estava nada bem, não senhor.
Pedira o bife mal passado e fora-lhe apresentado um naco de carne assada. Além disso, o molho de cogumelos estava frio e quanto à “mousse caseira” não passava de uma miscelânea instantânea, “acaseirada” por um toque de um qualquer generoso licor. E rematou com uma ironia cortante, que deixou o empregado sem pinta de sangue: “mas não se preocupe, pois não tenciono cá voltar e vou recomendar aos meus amigos que façam o mesmo.”
Murmurando entre dentes pedidos de desculpa e prometendo que tal não voltaria a suceder, o empregado afastou-se com cara de poucos amigos. Um casal que se encontrava na mesa contígua sorriu com ar de aprovação, deixando em Frederico a impressão de que no final do jantar não teriam qualquer rebuço em tomar a mesma atitude.O nosso compatriota, pelo contrário, sentia-se indisposto e envergonhado. Não pela atitude do seu comparsa, mas pela sua. Pressentiu um rubor invadir-lhe a face, que se avolumou no momento em que o seu parceiro interrompeu o silêncio para dizer:
“ Esteja à vontade! Eu conheço bem os portugueses e sei perfeitamente que se constrangem muito em reclamar!”
Frederico sentiu-se pequenino, carente de um subsídio de periferia e com vontade de se enfiar pelo chão abaixo. De regresso a Portugal contou a cena a um grupo de amigos, a quem afiançou ter aprendido, naquela noite em Bruxelas, uma grande lição: é que os portugueses, talvez porque tenham da palavra reclamação um conceito de mau carácter, de mesquinhez, quiçá de mau feitio, inibem-se de reclamar, principalmente em locais que gozam do estatuto de serem de luxo.
Reclamar, de forma cordata, é um acto de bom senso e até deve ser visto como uma atitude amiga, para quem não tenha da amizade a noção de “palmadinhas nas costas”. A realidade é esta: se somos todos consumidores, também somos todos produtores , diariamente, na nossa vida profissional. Por isso, agimos. E ao agir, é óbvio que estamos sujeitos a errar. Mas se erramos e ninguém nos chama a atenção, corremos o risco de errar novamente, o que não é agradável para nós nem para as vítimas dos nossos erros. Por outro lado, quem nos fornece produtos ou serviços e se habituou a não ter que enfrentar reclamações, terá eventualmente menos pudor em nos enganar.
É por essas e por outras que me interrogo qual será a razão porque a imprensa, sempre solícita a aconselhar-nos a visita a um determinado restaurante ou hotel, não se faz eco de verdadeiros logros em que podemos cair. Basta a um restaurante ser citado como “local de culto” em duas ou três publicações de prestígio, para se alcandorar ao altar dos intocáveis. E quem disser mal, que se cuide, porque certamente será julgado como indivíduo de má índole ou mesmo mau porte, cliente indesejado, por ser capaz de pôr à vista de toda a gente os podres de determinado estabelecimento que caiu do pedestal e se recolocou na mediania do panorama gastronómico português.