
Poucas devem ser as povoações portuguesas que não tenham um Café Central. Na literatura, o Café Central também está representado na belíssima trilogia de Álvaro Guerra, a par do Café República e do Café 25 de Abril.Há tempos, a RTP 2 começou a exibir uma série humorística, animada, com o mesmo nome.
Vi , ocasionalmente, meia dúzia de episódios e aceito sem rebuço que a maioria das pessoas não ache piada nenhuma àquilo. Na mentalidade urbana dominante, aquelas personagens não encaixam. Para mim, que percorro mensalmente milhares de quilómetros pelo país e , não raras vezes, combato a solidão nocturna- ou a insónia- com dois dedos de conversa entre uma bica e um copo no Café Central de ocasião, o ambiente retratado na série – descontados os exageros da carga humorística- não é tão descabido assim. Aquelas personagens existem mesmo .
Não serão tão vincadas como as pintadas no Café Central televisivo, mas a série é humorística - pel menos esforça-se- o que justifica algumas pinceladas mais abrasivas e contundentes, realçando os perfis das personagens.
Quem não entendeu assim foi um grupo de mulheres e entidades que apresentaram queixa à ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social). As queixosas insurgem-se contra a forma como é retratada Gina, uma prostituta de sotaque brasileiro que frequenta o Café Central. Na opinião delas, a personagem denigre a mulher brasileira.
Das duas uma:ou sou muito inteligente, ou tive sorte na meia dúzia de episódios que vi ( são - ou eram?- emitidos diariamente dois episódios, por volta da meia noite). É que percebi logo que a Gina não é brasileira. É uma portuguesa que compõe a sua imagem com sotaque e expressões aprendidas nas telenovelas de que é consumidora compulsiva, a que juntou a profissão imaginária de psicóloga. Se é verdade que a linguagem por vezes roça a brejeirice, não é no entanto ofensiva. Se é verdade que raras vezes me fez esboçar um sorriso, também não me pareça que fira a sensibilidade e dignidade de alguém.

Como disse Jorge Wemans- director da RTP 2 – ao DN,
“ O Café Central é um comentário sobre a actualidade nacional e internacional, a partir de um lugar de má fama , não de um salão de beleza. Neste sentido, a construção das personagens parte de uma certa marginalidade e não da normalidade”.Eu acrescentaria que muitos dos mais de 100 mil espectadores que vêem a série, nunca teriam conhecimento de muitas notícias exibidas no televisor do Café Central ( e depois comentadas pelos intervenientes: um conde, um taxista, um betinho de esquerda , um bêbado, o dono do Café e a já referida Gina), se a série não existisse.
Confesso a minha estupefacção ao constatar neste país que vive a noite inteira centrado em telenovelas, reage com um encolher de ombros ou grande entusiasmo a realitty shows como A Casa dos segredos, Big Brother e quejandos, a existência de um grupo de Mães de Bragança do televisor brandindo o Corão das boas práticas contra uma série humorística. Por coerência, estas senhoras deviam pedir a proibição das páginas de RELAX do DN onde por baixo de fotografias de corpos curvilíneos, prostitutas ( brasileiras, portuguesas, cubanas, espanholas italianas e sei lá mais o quê) enaltecem os seus predicados na tentativa de atrair clientes, com um receituário de serviços que- esses sim- por vezes me fazem abrir a boca de espanto .
Nesses anúncios, minha senhoras, não há humor. Nem amor. Há miséria física,material e humana que vos devia preocupar bem mais, do que uma boneca animada de curvas voluptuosas e decote generoso, cujo único pecado é esforçar-se por provocar alguns sorrisos num povo triste e cinzentão que medra entre medidas de austeridade .
Caiam na real, minhas senhoras! Deixem em paz o Café Central e deixem de ser ridículas. Para ridículo, já chega este governo que nos caiu em (des)graça por vossa obra e graça, com ou sem o voto do Espírito Santo.