
Olá amigas e amigos do Rochedo.
Muitos de vocês ainda não me conhecem, porque não apareço aqui há quase um ano, por isso apresento-me, sou a Martinha e a razão de cá vir escrever hoje é para vos dizer que vou à manifestação da geração à rasca, porque tive uma conversa com a mamã e decidi que era a melhor maneira de agradecer ao sr. Cavaco Silva o incentivo que me deu ao alertar-me para a necessidade de um "sobressalto cívico".
Na verdade estou sobressaltada há muito tempo, mesmo à rasca, desde que terminei a licenciatura estou farta de enviar currículos para empresas, responder a anúncios e népia. A última vez que fui a uma entrevista perguntaram-me se eu tinha experiência e quando lhes respondi que sim, porque trabalho há anos na nossa loja da Lapa, olharam-me de soslaio, perguntaram-me que é que isso tinha a ver com o lugar pedido pelo anúncio, que era de chefe de recursos humanos, eu respondi que tinha experiência, porque todos os dias tenho de afivelar o sorriso e fingir que não percebo o que os clientes que vão lá dizem de nós. Se eles soubessem como é difícil duas mulheres chinesas com uma modesta loja aqui na Lapa serem respeitadas neste país não faziam a pergunta, mas eles nem imaginam como já foram antipáticos connosco e nos mandaram para a nossa terra, nos acusaram de andar a explorar outros chineses e a enganar os portugueses, fomos acusadas de criminosas e prostitutas, alguns clientes já nos apalparam como se fossemos gado, convidaram-nos a "dar uma voltinha", chorámos muitas lágrimas à noite agarradas uma à outra mas diante dos clientes temos sempre um sorriso, porque o que queremos é que eles voltem cá mais vezes e nestes tempos de crise são cada vez mais os que cá vêm, felizmente, o problema é que muitos vêm mal dispostos e dizem quando é que eu imaginei algum dia entrar numa loja destes gajos, raisparta a crise.
E como aos 28 anos continuo sem emprego, a viver em casa da mamã, a receber mesada e não vejo futuro para mim, outro dia desabafei com a mamã e disse estou mesmo à rasca e a resposta que ela me deu foi desenrasca-te que eu também me desenrasquei quando tinha a tua idade. Respondi que então ia à manifestação, queixar-me da falta de solidariedade intergeracional, ou lá como é que eles dizem e então a mamã rebentou numa choradeira e perguntou-me , julgas que a minha vida foi fácil e não tive de me privar de tudo para que nunca te faltasse nada e te poder dar um curso? Sou eu que te pago as idas às discotecas, o telemóvel, a prestação do carro, que te visto, alimento e agora vens dizer que não sou solidária contigo, porque é que não pegas nos trapinhos e te fazes à vida como eu fiz quando aceitei o convite do Carlos e vim contigo para Portugal, deixei a família para te dar um futuro melhor, és uma ingrata, desaparece e eu então caí em mim e desatei a chorar, a mamã disse deixa lá filha, eu vou contigo à manif porque também estou à rasca.
Quando fechámos a loja fomos ali a um café na Lapa comer um bolo de arroz e estávamos a planear a ida à manif, quanto entrou o sr Abílio, um velhote de quase 60 anos que é funcionário público e se livrou do corte nos salários porque só ganha 500 € e que ao ouvir a nossa conversa disse eu também vou, porque com o aumento do custo de vida e a ter de suportar o marmanjão do meu filho com 37 anos que apesar de ter emprego nunca mais sai de casa e não dá nada do que ganha para ajudar nas despesas da casa estou à rasca e não aguento mais.
Quando saímos encontrámos a D. Adélia, uma senhora a rondar os 50, que foi despedida há três anos da empresa onde trabalhava desde os 25 e nunca mais conseguiu arranjar emprego , a mamã teve pena dela e pediu-lhe para ela fazer a limpeza da loja e lá lhe vai pagando um dinheirinho que sempre é uma ajuda coitada e quando soube que íamos os três à manifestação disse que também ia, porque também está à rasca.
Já à porta de casa encontramos o sr. Filipe, motorista de uns finaços aqui da Lapa a quem o patrão só paga metade do salário há seis meses, porque diz que a vida está cara e não tem dinheiro para mais , o sr Filipe, coitado, diz que sempre é melhor metade do salário do que nenhum e lá vai ficando à espera de encontrar coisa melhor, mas também está à rasca e por isso também vai à manifestação e já íamos a entrar em casa quando o Carlitos apareceu em alvoroço a dizer que ia à manif porque o sr. Cavaco Silva dissera que os jovens se tinham de revoltar. A mamã ainda argumentou mas Carlitos, tu só tens 14 anos o que é que vais lá fazer, ele respondeu que ia assegurar o futuro e ainda por cima gostava muito do Jel e do Falâncio e como eles também iam, tinha a oportunidade de assistir a um concerto à borla,porque tinha feito vinte chamadas para votar neles e tinha esse direito.
Ai a minha vida, que a Lapa vai toda à manif porque a vida não se aguenta, mas agora o meu problema é saber como vou vestida, porque ir a uma manif onde vai tanta gente conhecida com a roupa de todos os dias é uma vergonha, lá vou ter de pedir à mamã dinheiro para uma indumentária nova , espero que ela compreenda, porque nestas coisas ela é muito generosa. Como estou agora muito atarefada a convidar amigos do Facebook a aparecerem na manif, pedi à mamã para telefonar ao Carlos a convidá-lo para ir connosco, porque afinal a manif é a de um país à rasca e não a de uma geração à rasca, e se não é assim devia ser, a mamã ficou muito triste com a resposta do Carlos que disse que compreendia muito bem as razões dos jovens, mas não se solidariza com quem tem o desplante de acusar os mais velhos de falta de solidariedade e aconselhou-a a ler isto que eu por acaso já tinha lido e até lhe dou razão, mas vou mesmo e se tiver tempo ainda vou mandar um mail para o sr. Cavaco a convidá-lo a vir também porque, afinal, foi ele o grande impulsionador desta manif.
Ah, já me esquecia... depois da manif havemos de ir todos para o Bairro Alto, ou para Santos, gozar a Noite da Pinhata até às tantas. Alguns vão beber demasiado, porque se os papás lhes dão dinheiro é para se divertirem e esquecerem que estão mesmo à rasca. Acho que toda a gente compreende...
Vossa,
Martinha