
A manhã de ontem foi um autêntico pesadelo para os lisboetas. A chuva alagou a cidade, tornando-a intransitável em algumas zonas. Esta é uma cena vista todos os anos e as reacções populares e jornalísticas não deixam de ser igualmente repetitivas. Detenho-me, no entanto, em duas críticas muito comuns, que parecem renovar-se em tempo de tormenta, numa sincronização que me faz lembrar a chegada das andorinhas na Primavera.
A mais estafada é “ Isto só acontece em Portugal”. Mentira! Quem faz uma afirmação dessas, além de sofrer deste congénito umbiguismo só deve viajar no pico do Verão, caso contrário saberia que isso é vulgar ocorrer, durante o Inverno, em muitas capitais europeias. Londres, Paris,Roma ou Bruxelas, não estão imunes aos maus humores de S. Pedro, que de um momento para o outro decide despejar o autoclismo celeste. Talvez por andar distraído com a música que emana dos ipods,na corte celestial, não cuida do bem estar dos que cá andam em baixo em amarga labuta, sujeitos aos descuidos e desmandos celestes.
Se escolhi estas cidades, foi porque em todas elas já passei por provações idênticas. Também, em todas elas, assisti a reacções que em tudo se assemelham a outra das recriminações muito invocadas pelos portugueses que encontram eco da sua arengada na comunicação social: “A culpa é da Câmara, porque todos os anos acontece a mesma coisa e já deviam ter tomado medidas para evitar a situação”.
Estou em condições de poder afirmar que os actuais sistemas de drenagem de Lisboa não são em nada inferiores aos que existem noutras cidades europeias de maior dimensão e densidade populacional. As inundações provocadas pela intempérie radicam na morfologia específica da cidade de Lisboa e, essencialmente, na incúria cidadã. Cumprissem os lisboetas os seus deveres de cidadania e não teríamos um planeamento urbano caótico, as alterações do PDM não se fariam ao ritmo dos interesses dos patos bravos ou de conglomerados de lojistas que exploram o deslumbramento pacóvio do consumidor das berças, transformado em urbano, por força das migrações internas. É para seu deleite e encantamento que se constroem, com a complacência das autoridades e o lucro ignominioso dos promotores, condomínios privados ou dormitórios sub-urbanos em leito de cheia. Ou se erguem, dentro da cidade, centros comerciais gigantescos, cheios de luzinhas psicadélicas e chilreares metálicos de passarinhos electrónicos - prática vedada em algumas das principais cidades europeias, cujas autoridades obrigam a respeitar escrupulosamente regras de volumetria destas catedrais aonde os consumidores vão em peregrinação rotineira, satisfazer a sua volúpia consumista.
Convém, entretanto, lembrar uma vez mais que estas intempéries se tornaram mais intensas, mais localizadas e mais frequentes, agravando as consequências para os cidadãos. Há mais de 20 anos que cientistas e ambientalistas vêm chamando a atenção para estes fenómenos naturais, cuja frequência se irá intensificar. Deslumbrados com a parafernália da oferta consumista, maravilhados com os prodígios das tecnologias, adormecidos pelo ecrã que domina as nossas vidas e aumenta a nossa passividade, esquecemo-nos de pensar, de reflectir sobre as coisas. Ficamos paulatinamente à espera que nos impinjam a última novidade e, perante um fenómeno natural, uma catástrofe, reagimos como autómatos. Premimos o botão e desatamos a lançar as culpas sobre quem nós escolhemos para dirigir os nossos destinos, porque andamos muito ocupados para nos preocuparmos com essas minudências do planeamento urbano e do ordenamento do território.
Enquanto houver árvores que dêem telemóveis de última geração , ipods, ipads e toda a parafernália de bens de consumo com que nos deslumbramos, não temos tempo para nos preocupar com a Natureza.
Então, se é assim, não venham com lamúrias. É muito bem feito que S. Pedro despreze as regras de civismo terrenas e se esteja marimbando se os dejectos celestiais caem no mar, no deserto , ou nas ruas da cidade, provocando grandes transtornos aos autómatos que por cá habitam.
Então, se é assim, não venham com lamúrias. É muito bem feito que S. Pedro despreze as regras de civismo terrenas e se esteja marimbando se os dejectos celestiais caem no mar, no deserto , ou nas ruas da cidade, provocando grandes transtornos aos autómatos que por cá habitam.
* Título roubado a um livro de Vitorino Nemésio