Um sonho em Euros
1 de Janeiro de 2002. Com os 10 euros que pudera levantar do meu banco uns dias antes, dispus-me a fazer a minha primeira compra em euros. Felizmente, o café da Isabel estava aberto e a minha primeira compra seria ali, no local onde todos os fins-de- semana fazia a primeira leitura dos jornais. E, naquele dia, havia uma compra especialmente entusiasmante. Os sonhos que a própria Isabel confeccionava e que não tinham rival na cidade inteira.Decidido, entrei. Olhei para a Isabel e descortinei, no seu olhar, restos de um “réveilon” consumido com entusiasmo, mas certamente também com pressa, porque fora preciso levantar cedo para ter a porta aberta. Esta constatação refreou-me um pouco o entusiasmo. Seriam os sonhos iguais aos que me acostumara, ou teria Isabel, na ressaca do “reveillon”, desleixado um pouco a sua confecção? Decidi arriscar.
-Isabel! Pode-me embrulhar um sonho, por favor?
- Como posso embrulhar-lhe um sonho?- respondeu sem esconder a malícia que nos olhos amendoados. Os sonhos não se embrulham...
-Não é desses que está a pensar. Esses são cor de rosa e desses eu já não tenho há muito tempo, Isabel!
-Quer então dizer que só tem pesadelos?
-Sim... mas esses também não são sonhos, não é?
-Está, bem, está bem... Quer então um sonho para comer! Normal ou miniatura?
-Pode ser miniatura. Com esta idade, já não tenho direito a grandes sonhos. Mas talvez esse me ajude, logo à noite, a ter um sonho cor de rosa.
- Se fosse a si levava um dos grandes, sempre é capaz de fazer mais efeito! Mas o senhor é que sabe...São 85 escudos, por favor!
- Bem, mas eu não tenho escudos...só euros!
-Ah! Pois... já me esquecia. Deixe cá ver quanto é que isso dá em euros. Onde está a máquina do euro, Manel?
(Solícito, Manuel entra em cena com a euro calculadora em riste, que entrega a Isabel. Operação feita, vem a sentença...)
-São 42 cêntimos...
Entreguei uma moeda de 50 cêntimos e esperava pelo troco, quando a voz do Manuel ecoa da cozinha:
-Fizeste mal as contas, Isabel! O preço em euros é de 43 cêntimos!
-Mas eu fiz as contas com a calculadora do Euro, Manel, e o que lá está é 42 cêntimos!
-É? Então vê lá quanto é que são 42 cêntimos em escudos!
Isabel pegou de novo na euro calculadora, arregalou os olhos e exclamou surpreeendida:
-Pois é! 42 cêntimos são 84escudos. Assim sendo, tenho de lhe cobrar 43 cêntimos!
-Alto lá!- vociferei. Então quanto é que são 43 cêntimos em escudos?
( Mãos nervosas mexendo na calculadora e a resposta incrédula):
-43 cêntimos são 86 escudos!
-Então em que ficamos? Se me cobra 42 cêntimos fica a perder 1 escudo, se me cobra 43, fico eu a perder um escudo. Como não quero ficar a perder, o melhor é voltar cá amanhã e pagar-lhe em escudos...
-Mas tem outra solução- alvitrou Isabel sem tirar os olhos da euro calculadora.
-Então qual é?-perguntei.
-Leve 2 sonhos em vez de 1. Paga 85 cêntimos, que são exactamente 170 escudos, o preço de dois sonhos...
Acedi e levei comigo os dois sonhos. Afinal (pensei com os meus botões...) sempre poderei fazer feliz alguém que, logo à noite, aspire a ter um sonho cor –de – rosa! O pesadelo da inflação pode esperar.
(Crónica escrita em Novembro de 2001, para uma campanha de divulgação do euro, na revista "Consumidores")