Há muitos anos, numa pequena aldeia de um reino do norte da Europa, onde os camponeses têm assento no Parlamento e os reis se revoltam contra a aristocracia, pondo-se ao lado do Povo, vivia um casal humilde.
Ele trabalhava no Estado e ela era funcionária dos correios. Quando um dia chegou a casa e disse ao marido que estava grávida, este perguntou-lhe:
- E o filho é mesmo meu?
A mulher, contendo as lágrimas que a indignidade da pergunta fizera libertar, respondeu com altivez:
“ Deus é meu juiz”.
Alguns meses depois nasceu uma criança que, por comum acordo entre os cônjuges, recebeu o nome de Daniel ( em Hebraico, Daniel significa “Deus é meu juiz”).
Correram os anos entre invernos gelados e estios amenos. Daniel cresceu. Cumpridos os serviços mínimos nos estudos fez-se à vida e rumou à capital. Arranjou emprego num ginásio com boa reputação e tornou-se um personal trainer.
Sucederam-se os dias e as noites. Com muito empenho, Daniel foi-se tornando conhecido na cidade, pelo seu profissionalismo e dedicação.
Um dia uma jovem que sofria de anorexia tocou à campainha. Queria inscrever-se no ginásio, por recomendação da irmã. Daniel foi chamado pelo proprietário para ser o seu personal trainer. Assim que a viu, teve a sensação de a conhecer de qualquer lado mas, mantendo a sua discrição habitual, nada disse.
À noite, no quarto de banho do seu modesto apartamento, Daniel gritou: “Eureka!” Acabara de descobrir quem era a sua nova cliente. Nada menos do que uma princesa. Olhou uma vez mais para a fotografia da família real, colocada na parede sobre a sanita ( Não é “boutade”, na Suécia, as famílias têm, por tradição, a fotografia da família real no quarto de banho) e não teve quelaquer dúvida. Era mesmo a princesa Victoria!
No dia seguinte, o discreto Daniel não revelou a descoberta à sua nova cliente mas, conta a lenda, que lhe terá feito uma massagem mais aplicada depois dos exercícios do dia. Durante dois anos, foi frutificando uma relação de amizade entre o personal trainer e a princesa, mas nenhum ousava dar o primeiro passo. Não se sabe, inclusive , de quem foi a iniciativa de convidar o outro para uma ida ao cinema, mas disse-me fonte bem informada que a ideia surgiu enquanto resolviam palavras cruzadas no bar do ginásio. O enunciado da Vertical 2 era “ primeiro nome do realizador de Morangos Silvestres”. Percebendo que Daniel não sabia a solução, Victoria alvitrou:
- Olha lá, Daniel. Acabei de ler há bocadinho no “What’s on Stockholm” que o “Morangos Silvestres” está em reposição no Röda Kvarn. Não queres ir ver?
Daniel sentiu o coração a saltar-lhe dentro do peito. A primeira reacção foi inventar uma desculpa e recusar, mas Cupido deu-lhe um safanão e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Estás armado em parvo ou quê? Vai lá ao cinema com a rapariga! Não vês que ela está mais derretida que um esquimó nos trópicos? E vê lá se perdes a timidez e deixas de te comportar como um iceberg, parvalhão!
Daniel gostaria de ter dito a Cupido que estava enganado e se sentia mais parecido com aquele vulcão dos vizinhos islandeses, do que com um iceberg, pois há dois anos reprimia a torrente de amor que lhe percorria as entranhas como lava incandescente, mas calou-se.
Timidamente, quase em surdina, ainda perguntou a Victoria:
- E se nos vêem, Alteza? O que vão escrever os tablóides como o Expressen e o Aftonbladet? Quantas calúnias não irão lançar sobre Vossa virtude?
Victoria encolheu os ombros e perguntou:
-Nunca estiveste em Portugal, pois não?
-Não, Alteza…
-Havemos de ir lá um dia, quando aprenderes a falar português, para veres o que é um tablóide de má lingua, Daniel. Olha, vamos amanhã à sessão das quatro e deixa o resto comigo.
E foram…
Abrevie-se a história, para que os leitores não comecem a torcer-se na cadeira e vão a correr ler o final.
Deixemos de lado os pormenores pós cinema, as primeiras carícias, o primeiro beijo, a primeira… e retomemos o fio à meada três anos depois. Por essa altura já Daniel vivia com Victoria num apartamento, abrira três ginásios chiques em Estocolmo e mostrara a sua veia empreendedora expandindo o negócio para o Brasil.
Estava uma daquelas gélidas noites de Inverno e Daniel regressava de uma viagem de negócios , precisamente ao Brasil. O rosto tisnado do Sol disfarçava-lhe o ar campónio, tornando-o ainda mais atraente aos olhos de Victoria.
( A história conclui amanhã. Não quero abusar da vossa paciência.)