
Como a maioria dos leitores já terá reparado, sou um bocado anarca. Ou, como diria o Jorge Coelho, referindo-se aos independentes que militavam à época no Partido Socialista, sou imprevisível. Por outras palavras, tomo decisões que são irracionais aos olhos dos outros, mas para mim são a escolha acertada. É assim que decido as minhas férias e não me tenho dado nada mal.
Raras foram as vezes em que planeei férias com mais de duas semanas de antecedência. Não se espantem, por isso, se vos disser que a minha decisão de entrar o ano de 2002 na Sardenha foi tomada a 23 de Dezembro. A primeira escolha tinha sido Dubrovnik, mas a dificuldade em arranjar voos até lá e as memórias ainda frescas das guerras que durante quase uma década assolaram a região balcânica fizeram-me mudar de ideias. No fundo, tive medo de ver em ruínas uma cidade que me galvanizara quando vivera na ex-Jugoslávia, pelo que adiei o regresso a Dubrovnik por dois anos e apontei à Sardenha.

Ir à Sardenha em pleno Inverno não é a escolha mais sensata e perder três dias em Cagliari uma perfeita estupidez, porque é das cidades mais feias e porcas que vi em dias da minha vida. O problema é que fui para a Sardenha “às escuras”, sem previamente me documentar sobre a ilha e achei que o mais sensato seria reservar hotel em Cagliari para a véspera e dia de Ano Novo.
Cheguei num dia 27 de Dezembro tenebrosamente cinzento, mas sem chuva. Ao fim de duas ou três horas estava farto e decidi iniciar, logo no dia seguinte, a volta de reconhecimento à ilha.
Às oito da manhã já eu estava na Avis a alugar um carro e, abençoado por um sol límpido que se manteria até ao dia do regresso, comecei o meu périplo sardo. Paisagens bonitas, praias de areais extensos a prometer verões para mais tarde recordar, mas dias curtos que obrigavam a encurtar as paragens mais do que o desejado.
Em três dias tinha percorrido a ilha quase toda e preparava o regresso a Cagliari, no dia 31, para passar a noite de fim de ano, descendo pela costa Oeste. De tudo o que até então vira nada me deixou de “água na boca”. Nem a badaladíssima Costa Esmeralda, com luxuosos “aldeamentos” turísticos de gosto mais ou menos duvidoso onde coabitam vedetas do espectáculo e jogadores de futebol ( Luís Figo incluído) me deixou roído de inveja.
É certo que a Sardenha tem praias belíssimas, cabos escarpados de grande imponência, e baías largas abrigando extensos areais mas em pleno Inverno, com tudo fechado e deserto, senti-me personagem de um filme de ficção, desempenhando o papel de único sobrevivente de uma qualquer catástrofe. Apenas o sol me transmitia algum alento e, por diversas vezes, dei por mim a lamentar a opção de celebrar a entrada no Euro - a mirífica moeda que nos havia de salvar a todos da bancarrota, transformando a abóbora tuga num coche de cristal puxado por cavalos brancos “puros sangue”- naquela paradisíaca ilha italiana.
(A História está sempre a dar provas de que os contos de fadas são muitas vezes traiçoeiros e quase sempre ilusórios. O coche de cristal tuga está transformado numa carcaça velha que a qualquer momento pode ser abatida por um qualquer sucateiro cotado nas bolsas de Tóquio ou Nova Iorque e dos “puro sangue” nem sinais. Quanto aos passageiros tugas, depois de viverem durante algum tempo a ilusão do fausto, estão agora a desfazer-se ao longo do caminho das jóias com que a sociedade da hiperescolha os embelezou, a troco de promessas de endividamento fácil e barato. Mas que é que isto tem a ver com Alghero e a Sardenha? perguntará, com carradas de razão, qualquer leitor já cansado de tanta prosa inútil.Reconheço , humildemente, que rigorosamente nada… mas eu não avisei logo de início que sou imprevisível? Retomemos então o fio à meada…)
Abandonei a Costa Esmeralda e iniciei a descida para Cagliari pela costa Oeste. Ao longo da viagem a Sardenha parecia ter começado a ganhar vida, dando a sensação de toda a população se ter concentrado naquela zona da ilha. Já começava a anoitecer quando chego a uma cidade a fervilhar. Nas suas ruas profusamente decoradas e iluminadas, as pessoas acotovelavam-se numa azáfama que ainda não tinha visto na Sardenha. As esplanadas regurgitavam de gente encasacada e de turistas do Norte da Europa, a quem os 15 graus despertavam o apetite da cerveja de lúpulo ( preciosidade local) e convidavam a despojar-se da roupa.
Alghero fez-me sentir como se tivesse acabado de chegar a um oásis. Passeei-me pelas suas ruas estreitas dos tempos medievais, onde ainda são visíveis alguns traços da ocupação catalã durante a Idade Média. Vagueei pelo porto, beberiquei mirtos, limoncellos e vernaccias e, seguindo a máxima “se conduzir não beba”, deixei-me ficar por lá até ao dia seguinte.

Quando acordei percebi que as liras já não serviam para nada e os escudos ainda menos, fiz fila para levantar os primeiros euros numa caixa multibanco e de seguida pensei em dar um mergulho naquela água de cores convidativas mas, como animal de climas quentes, afastei a ideia logo que pisei a areia e senti uma leve brisa marítima anavalhar-me o nariz.
Almocei numa esplanada gozando um sol tímido. Comi o queijo local com pane carasau. Apesar de estaladiço, pareceu – me seco mas, perante a minha reclamação, o proprietário respondeu, indignado, que aquele era o melhor pão do mundo e que podia ser comido até um ano depois de ser confeccionado. Pensei que fosse “tanga de italiano”, mas a consulta do guia que comprara em Cagliari confirmou que era mesmo verdade.
Esfomeado, atirei-me ao churrasco variado servido em buffet, cuja principal estrela era um leitão que – não tenho quaisquer dúvidas - devia ter enviuvado umas três vezes antes de ser atirado para uma grelha, como petisco para turistas incautos.
Nesse dia 1 de Janeiro de 2002, em Alghero, nasci como cidadão europeu de pleno direito. Fiquei desobrigado de complexas operações cambiais onde o escudo era sempre a parte mais fraca, servindo de idiota e bombo de festa nos bacanais dos mercados financeiros. Finalmente passava a integrar o clube dos ricos, pagava em euros como qualquer espanhol ou grego, companheiros de infortúnio habituados a viver na cauda da Europa e mandava as liras às urtigas, escarnecendo desses ricaços italianos que certamente por engano, ou graças a uma forte cunha, faziam parte desse clube de ricos que à época se chamava G-8, mas a inflação e os mercados financeiros obrigaram a rebaptizar de G-20, incluindo maltrapilhos como a China.Que interessa agora se tomei uma decisão precipitada ao escolher a Sardenha? O importante foi que naquele dia pude , pela primeira vez na minha vida, dizer a um italiano, com o peito inchado e a transbordar de orgulho “o meu dinheiro é igual ao teu. Toma e embrulha!"