A noite já tinha caído quando entrei no Metro. Estação de Telheiras, onde começa a Linha Verde. Já é noite cerrada.
Abro o livro que trago comigo e me fará companhia no percurso até ao Cais do Sodré e a partir dali no comboio que me levará ao Estoril.
Tinha lido apenas meia dúzia de linhas, quando três jovens bonitas e bem aperaltadas entram e se sentam ao pé de mim. Duas ficam no banco em frente, outra senta-se ao meu lado. É quinta-feira e pela toilette e ar festivo, deduzo que vão jantar fora e depois "curtir" a noite.
Por breves instantes faço rewind ao tempo em que preparava as noites com mil cuidados e muita excitação à mistura, por isso, não estranhei as vozes alteradas, debitando um volume de decibéis acima da média.
Recuperei de novo a leitura de "A Rapariga que Roubava Livros".
O comboio iniciara o seu percurso vagaroso, debitando um ruído intenso, provocado pela fricção de ferros em conflito. As jovens tiveram de elevar ainda mais o tom de voz, para encurtarem a distância sonora entre os bancos que as separavam. Foi então que fui obrigado a distrair-me da leitura e ouvir a conversa. A jovem ao meu lado era a mais faladora e animada. Tinha uma voz delicada e doce, mas conspurcava o ar com as palavras que lhe saíam da boca. Em cada cinco palavras que dizia uma tinha de ser a conjugação do verbo "cagar".
Outras duas eram palavrões mais elaborados e coloridos, relacionados com a genitália masculina.
Quando não era ela que se "c...." era uma terceira pessoa. O pai, por exemplo, para cujos conselhos ela declarava estar-se c......, também se "c....." se ela não dormia em casa. A cota da Mãe é que era a má da fita ( anotei com espanto este caso raro)
Ainda pensei sugerir à minha companheira de viagem que em vez de utilizar verbo tão escatológico, recorresse às expressões similares da minha juventude. Nesse tempo "estávamos nas tintas" ou "borrifando", expressões mais coloridas e higiénicas do que "estar-se a c...."
Não o fiz, porque já sabia a resposta, por isso esforcei-me por me concentrar na leitura. Debalde. Até ao Chiado- onde as jovens saíram sorridentes e me desejaram boa noite educadamente- continuei a ser inundado por palavras de m....
O mais curioso é que, apesar de o vocabulário ser escatológico e a roçar o hardcore, a conversa não era de m..... Bem pelo contrário. Falavam de telenovelas e da alucinação que provocam nos adultos. Percebi que detestavam telenovelas para jovens, como " Morangos com Açúcar" que carinhosamente rotulavam de "punh.... ideológicas".
Foi fraco o consolo por essa constatação, embora compensado com o facto de ter registado a posteriori que aquelas três jovens não pegaram nos seus telemóveis durante o percurso. Reconfortante.
Não sou avesso ao palavrão contextualizado e por vezes também o utilizo, normalmente como catarse para as minhas fúrias. Detesto, porém, o palavrão gratuito.
Pousar numa esplanada para ler um livro tranquilamente e ter um grupo de jovens por perto é, hoje em dia, uma actividade de risco.
Quando era jovem também tinha conversas acaloradas em esplanadas, onde o vernáculo entrava com frequência mas, assim que se aproximavam adultos, o tom da conversa baixava de tom e se alguém largava um palavrão, fazia-o sempre num sussurro, de modo a que os decibéis não ultrapassassem o perímetro das nossas mesas.
Hoje em dia, o palavrão tornou-se democrático e, porque não admiti-lo, um instrumento de coesão social.
Nas conversas entre jovens, em cada três palavras entra um palavrão. Os jovens parecem gostar de o exibir como prova de maturidade. Pior do que isso, quem o profere faz gala nisso.
Não estou a generalizar. Há jovens educados e respeitadores mas seja em Camarate, na Picheleira, no Parque das Nações ou na marina de Cascais, o palavrão não escolhe lugares nem classes sociais.
Pelo
contrário. Se noutros tempos foi estigmatizante e vinculado a pessoas rudes das classes sociais mais baixas, hoje em dia o palavrão é integrador.
De qualquer modo, não é preciso democratizá-lo ao ponto de se tornar linguagem de salão...