(Continuado daqui)
Quando chegou a casa, Cátia Janine estranhou que a mãe estivesse na cozinha a preparar o jantar, porque ao domingo o almoço era sempre tardio e reforçado e à noite só comiam uma refeição ligeira.
“ Então a cozinhar ao domingo, mãe?”
“ Foste fazer um pic-nic deves vir com fome. Só estou a fazer uns bifinhos e fritar umas batatas, também não é grande coisa…”
“Ó Mãe, já lhe disse para se deixar dessas coisas. Sou maior e vacinada se tiver fome cozinho para mim! Além disso já teve imenso trabalho ao almoço”.
“ Foi só para mim e para o teu pai. O teu irmão não veio, porque a Teresinha hoje acordou com febre, parece que está com gripe e eles ficaram em casa”.
“ Vou só ali dar um beijo ao pai e já venho ajudá-la”
“ Vai lá fazer companhia ao teu pai, que não te quero aqui na cozinha. Já basta teres de trabalhar a semana inteira”
“ E a mãezinha não se farta de trabalhar?”
“ Isso era quando tinha de tratar de ti e do teu irmão, filha. Agora sou só dona de casa, ninguém dá valor a isso. Tratar da roupa fazer o comer e manter a casa limpinha não é coisa que dê muito trabalho...”
“ Ó mãezinha, não diga isso! Eu sei bem que isso dá um trabalhão, não desvalorize o seu trabalho…”
“ Pois, está bem… olha vai mas é ter com o teu pai que está ali em cuidados por tua causa”.
Cátia Janine deu mais um beijo à mãe, afagou-lhe o resto com ternura e foi ao encontro do pai que dormitava na sala com a televisão ligada e um livro sobre o regaço.
Àquela hora devia estar a dar o Telejornal, mas no ecrã apenas se lia “ Pedimos desculpa pela interrupção, o programa segue dentro de momentos”.
“ Olá paizinho! A televisão está cada vez pior. Ou é isto ou a Mira Técnica, programas é que não há nada de jeito”.
“Qualquer dia deixo de pagar a licença da televisão! 300 mil réis por ano para ver porcarias… se ao menos ainda dessem as Melodias de Sempre ou repetissem os programas do João Villaret… mas não… é só embarque de soldados para o Ultramar, Fátima, conversas do Marcelo e séries americanas! Até parece que somos uma colónia deles”.
“Que está a ler paizinho?”
“ Um livro do James Bond. Já estou farto do Sherlock Holmes e do Poirot, este sempre é diferente”.
“ Estou a ler um livro que o paizinho deve gostar. O Arquipélago de Gulag”.
“ Isso é uma porcaria! Só diz mentiras…”
“Porque diz isso paizinho? O Alexandre Soljenitsin é um Prémio Nobel e foi muito perseguido na Rússia, viveu aquilo tudo !”
“ Não é Rússia que se diz, Cátia… é União Soviética! E sei que esse Alexandre qualquer coisa é um aldrabão, porque uns amigos meus que até são doutores já o leram e disseram-me.”
“Está bem, paizinho, como queira, mas eu estou a gostar. Olhe, sabe o que é que dá na televisão hoje? "
“ Não… mas tens aí a Tele Semana que traz a programação toda.”.
Cátia Janine ia pegar na revista, quando se ouviu a voz da mãe:
“ O jantar está na mesa! Venham antes que arrefeça…”
Januário levantou-se de imediato
“ Anda lá Caty, não faças a tua mãe esperar”
Durante o jantar Cátia Janine foi bombardeada com perguntas sobre o que fizera durante o dia. Contou todos os pormenores sem omitir nada, excepto que tinha pedido a Júlio Saraiva que lhe arranjasse um apartamento para alugar.
D. Lucília não fez perguntas sobre Júlio, mas o pai não resistiu:
“E que faz esse homem?”
“ É vendedor de casas. Muito simpático, por acaso!”
“ Se calhar trabalha para o J. Pimenta…”
“ O paizinho parece que adivinha! Trabalha mesmo!”
“ Agora quase todos os vendedores trabalham para o J. Pimenta! É um fascista e um vígaro de todo o tamanho. Se houvesse justiça neste país já estava mas era preso”
“ Que horror, paizinho! Está sempre a dizer mal das pessoas, para si são todos fascistas! ”
Januário irritou-se com a admoestação cravou o olhar na filha e disse:
“ Sei muito bem o que estou a dizer! Este país está cheio de fascistas. Tu podes saber muito de leis, mas não sabes nada da vida, ouviste?”.
D. Lucília receou que a conversa azedasse e se transformasse em discussão. Procurava um pretexto para desviar a conversa, quando se lembrou do telefonema de Esmeralda.
“ Ai que já me esquecia, Caty! Telefonou a tia Esmeralda, disse que precisava de te fazer uma pergunta, mas não disse o que era. Devem ser lá coisas do padre de Ferreira… Pediu para lhe telefonares quando chegasses, porque é urgente.”