
Lisboa, 10 horas da manhã de um dia qualquer.
Na estação de Metro do Campo Grande, dois jovens maduros em aparente despedida daquele período épico da vida em que os aniversários ainda se celebram com um 2 à esquerda, entram numa carruagem parcialmente vazia. Sentam-se lado a lado.Um deles põe as pernas em cima do banco da frente.
Conversam num tom de voz perfeitamente audível pelos restantes passageiros, manifestamente exagerado para quem está sentado lado a lado. Não têm problemas auditivos. A explicação para que a conversa se desenrole numa escala de decibéis manifestamente desajustada está, porém, nos ouvidos, já que ambos exibem apêndices auriculares , que lhes permitem escutar a música dos seus i-pods ou MP 3.
Trata-se, afinal, de aproveitar ao máximo as potencialidades do corpo. Se a Natureza os presenteou com dois ouvidos, não foi certamente para que pudessem conversar em estereofonia. Então, há que desfrutar as dádivas da sociedade da hiperescolha e,enquanto ouvem música por um ouvido, conversam pelo outro, porque não há razão para se privarem do prazer da música, enquanto falam.
Provavelmente, nenhum deles sabe a música que o outro está a ouvir. Podem ser de géneros tão diferentes quanto as opiniões de cada um sobre um lance polémico de um jogo de futebol da véspera, ou tão semelhantes como a sua postura descontraída numa carruagem de Metro, que ocuparam com o mesmo à vontade de quem vê um filme em casa, enquanto come umas pipocas e bebe uma coca –cola ou uma cerveja.
Haverá quem veja neste cenário má educação. E quem o explique como uma postura própria de jovens dos tempos modernos que tiveram a felicidade de nascer numa época de liberdade. Uma discussão inócua, mas considerada útil por dois cidadãos seniores, em vésperas de reforma, que àquela hora viajam na mesma carruagem, observando a cena de soslaio.
Entre os seniores, a conversa desenrola-se num tom de voz mais recatado, quase imperceptível, mas quando chegarem ao final da viagem , no Marquês de Pombal, manterão as discordâncias quanto à interpretação da cena. Do mesmo modo, os jovens que sairão no Saldanha não terão chegado a acordo quanto ao lance de grande penalidade não assinalada pelo árbitro no jogo de futebol a que ambos assistiram na véspera, do qual viram dezenas de repetições. Insuficientes, porém, para se porem de acordo, talvez porque o amor clubístico se sobreponha à razão.
Este intróito pode parecer descabido, mas se o leitor tiver paciência para ler os próximos capítulos, talvez acabe por concordar que, afinal, isto está tudo ligado.
A viagem continua amanhã, sensivelmente à mesma hora...