
Como vos dizia ontem, ver “Slumdog Millionaire” foi apanhar um murro no estômago.Não apenas pelas emoções que o filme desperta, mas principalmente porque me senti a vivê-lo por dentro, num cenário que me é muito familiar.
Logo nas primeiras imagens, quando a câmara sobrevoa aquela imensidão de bairros de lata, vi-me num avião, há mais de 20 anos, a descer sobre o aeroporto de Bombaim, ao alvorecer. Depois, a cada cena sentia o mesmo incómodo da primeira vez que lá fui. Não pude evitar as lágrimas, durante o filme, como não as controlo cada vez que tenho de ir a Bombaim. Estive lá mais vezes do que desejaria ter estado. As vezes suficientes para saber que quando Jamal não hesita em mergulhar na fossa cheia de merda , para conseguir o autógrafo do seu ídolo... Danny Boyle não está a fazer ficção.
Já vos expliquei aqui a minha relação com a Índia e com Bombaim ( Mumbai). Percebem , por isso, (quem não leu, aconselho que o faça) a angústia que se apoderou de mim ao longo do filme, muito para além do enredo. Tudo aquilo é real, é o dia a dia de uma cidade de horrores que cresce sobre os seus destroços, atirando milhões de desalojados dos bairros de lata para “valas comuns” que ladeiam a estrada entre Mumbai e o aeroporto, numa luta constante pela sobrevivência.
Quando escolheu Mumbai para cenário do filme, Danny Boyle sabia o que estava a fazer. Ao desviar-nos a atenção para uma cidade ( e um país) cujas misérias são sobejamente conhecidas, procura impressionar, mas aliviar-nos a consciência. Com o cenário de Bombaim por detrás, podemos fingir que aquilo não é nada connosco.
No entanto ele sabe, como eu e muitos de vocês, que muito do que nos mostra, poderia ter sido filmado em bairros periféricos de grandes cidades europeias. Lisboa incluída.
Sim, em Lisboa também há crianças propositadamente mutiladas, para serem exploradas como pedintes; há um mercado de escravos, quase no centro da cidade, onde todas as madrugadas,a mão de obra é comprada ao desbarato e com direito a comissões aos angariadores, pagas pelo contratado; há jovens vítimas de exploração sexual, inseridas(os) em redes criminosas; há redes de crime organizado, que aliciam jovens para a prática de assaltos e outros actos violentos; há jovens a lutar pela sobrevivência, que não têm alternativa e estão dispostos a tudo. Quem não souber que tudo isto existe às portas de nossas casas é um MILIONÁRIO... vive no mundo da ficção.
“Slumdog Millionaire” não é um filme sobre a Índia. É um filme estupidamente real sobre este modelo de sociedade injusta, que nos mostra de forma cruel e violenta , uma realidade que varremos constantemente para debaixo do tapete. Uma sociedade onde tudo é possível. Até ganhar um concurso de cultura geral, apenas com os conhecimentos adquiridos na escola da vida! A ficção também lá está…nos últimos 20 minutos melosos, onde se cumpre o conto de Fadas, à moda de Bollywood. Com um travo de music-hall americano...